“É preciso ter coragem para ser mulher nesse mundo. Para viver como uma. Para escrever sobre elas”. Essa é a frase que a equipe da Olga, um think tank dedicado a elevar o nível da discussão sobre feminilidade nos dias de hoje, oferece na página de apresentação do site. E é um interessante jeito de começar a conversa que o GenderIT.org teve com a Luíse Bello, redatora da Olga e autora do blog Cronicamente Carioca. Elas também trabalham em temas de violência relacionada com a tecnologia e oferecem dicas para fazer frente a essa forma de flagelo.
FF: Qual foi a necessidade que levou vocês a começarem a iniciativa Olga?
Luíse Bello: O Think Olga veio da necessidade de um conteúdo voltado para mulheres que fosse mais profundo e reflexivo sobre a condição delas na sociedade. A proposta do site é abordar o universo feminino com um olhar que investigue quem é a mulher contemporânea e quais são as suas aspirações. Não estamos necessariamente em busca de uma resposta, mas sim das questões que podem dar mais opções às nossas leitoras, opções que muito vão além do que a sociedade espera e cobra das mulheres.
FF: A Olga faz a campanha Chega de Fiu Fiu, contra o assédio sexual em espaços públicos. Numa das maravilhosas imagens que você tem na página, existe uma que chamou a minha atenção que diz: “Caminhar por um espaço público não torna meu corpo público”. Acho interessante aplicar isso no cenário das complexidades que a internet apresenta, nos termos do público e o privado. Como vocês entendem essa relação? Existe uma reflexão desenvolvida a respeito? Tem recebido casos sobre o tema?
LB: A Declaração Universal de Direitos da ONU estabelece que “Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.” Esse direito é violado sempre que uma mulher é abordada por estranhos que, numa mera demonstração de poder, tecem comentários não solicitados sobre a sua aparência ou passam a mão no seu corpo.
A “Chega de Fiu Fiu” veio não só para alertar sobre a violência que é o assédio nas ruas, mas também para devolver às mulheres a sua voz e o seu direito de exigir respeito e privacidade. Vivemos numa época em que fomos desprovidas disso. Ao andar pelas ruas, isso se tornou uma coisa comum, e não deveria ser assim.
Além da normalização do assédio, também ocorre uma culpabilização da mulher que a desprovê mais ainda do direito à privacidade. Dependendo da roupa, do horário e de outros fatores que deveriam ser irrelevantes, muitos acreditam que a mulher está sinalizando uma abertura à invasão de sua privacidade. Por exemplo, se ela decide usar um short mais curto, então está “pedindo” para ser cantada. Ou, ainda, se resolveu passar por uma rua em determinado horário, deve estar ciente de que vai, sim, ser importunada por um homem. Quantas vezes vemos casos de meninas que sofreram algum tipo de violência sexual e, ao relatar o caso para familiares e amigos, ser repreendidas por terem bebido, ido até uma festa, enfim, “provocado” aquela situação? Como se a barreira contra o estupro fosse responsabilidade dela, e não da mente do criminoso.
Na internet, os casos de “revenge porn”, ou pornô de vingança, reforçam a noção de que a violação da privacidade feminina não apenas é válida, mas muitas vezes pode ser usada como arma contra a mulher, em forma de ameaça e castigo por ela ter decidido sair de um relacionamento, ou por mera diversão do sujeito com quem ela brevemente decidiu dividir a sua intimidade.
FF: Qual é a finalidade do mapa que tem no site? O que é que fazem – ou planejam fazer – com essa informação colhida ali?
LB: O Mapa Chega de Fiu Fiu é uma ferramenta de denúncia para vítimas e testemunhas de diversos tipos de violência de gênero e cor. A ideia é mapear os pontos da cidade onde ocorreram os assédios. Dessa forma, teremos um panorama dos locais onde eles ocorrem com mais frequência para que, assim, possamos investigar o que motiva esse distúrbio e promover transformações para que eles se tornem mais seguros para as mulheres. Não queremos que o mapa limite ainda mais os espaços da cidade por onde as mulheres podem circular tranquilamente, e sim ampliá-los.
FF: No site tem um F.A.Q. jurídico sobre a violência virtual. Isso apareceu em reposta ao que? A maioria das (interessantes) dicas são relativas ao assédio e a divulgação não autorizada de imagens de mulheres. Têm conhecimento de algum outro tipo de violência contra as mulheres relacionada com a tecnologia? Em quanto ao sistema judicial e as instituições como a polícia no Brasil, as mesmas possuem um histórico de resposta a esse tipo de agressões? Como agir no caso delas não responderem?
LB: O F.A.Q. jurídico é uma iniciativa do Think Olga para responder as questões legais que recebemos por e-mail. O primeiro F.A.Q. foi sobre violência virtual. Essa iniciativa veio em resposta ao aumento de casos de “revenge porn” no Brasil, e há muito pouca informação sobre que medidas práticas as vítimas devem tomar para se defender. Não cansamos de reforçar a importância da denúncia por parte delas. Sabemos o quanto é difícil ser vítima de uma violência, seja física ou virtual, mas se ela ocorrer, encontrar forças para ao menos tentar enquadrar o agressor judicialmente é vital contra a impunidade nos crimes contra a mulher. Não pode ficar por isso mesmo.
As leis brasileiras têm mecanismos de defesa contra crimes virtuais, parte deles está disponível no nosso F.A.Q. As vítimas, porém, às vezes esbarram na ignorância de servidores públicos que minimizam suas queixas e até se recusam a registrá-las. A saída é insistir, buscar ajuda de um advogado, ir a delegacias específicas contra crimes virtuais ou à delegacia da mulher e, em última instância, à corregedoria de polícia para denunciar a omissão das delegacias anteriores.
A internet, numa semelhança com o mundo real, é um ambiente hostil para as mulheres. Apesar de simbólica, a violência cometida contra elas no ciberespaço também machuca, e muito. Infelizmente, muitas mulheres já tiraram a própria vida por não suportarem a vergonha de ver fotos e vídeos íntimos divulgados na rede. Outras perdem empregos, relacionamentos, entram em depressão e precisam encarar as gravíssimas consequências da violação das suas privacidades.
Por outro lado, há mulheres conquistando importantes vitórias após denunciarem seus algozes. Recentemente, no Recife, um homem foi preso após ameaçar que divulgaria vídeos da ex-namorada caso ela não lhe desse uma certa quantia em dinheiro. Ela levou “prints” das ameaças para a delegacia, fez a denúncia, o sujeito foi preso e a investigação foi concluída sem que a identidade da vítima fosse revelada.
FF: Quais são os temas principais de reflexão no espaço Think Olga? Qual é para vocês a utilidade desse tipo de espaços online? Propiciam discussões profundas? Geram mudança de atitude?
LB: Procuramos, principalmente, novas narrativas para as mulheres. Os estereótipos e pressões sociais são muito limitantes. Existe uma busca incessante por objetivos que são passados de geração em geração por pura inércia, e eles tomam muito tempo das mulheres, além de causar um enorme desgaste emocional. São coisas como casar, ter filhos, emagrecer, ser dócil e meiga, procurar validação no olhar masculino, estar na moda, etc. Mas será que as mulheres realmente desejam isso tudo ou foram convencidas de que isso era necessário para ser feliz? Queremos gerar uma mudança de atitude e quebrar esse ciclo ao abordar temas que propõe uma reflexão profunda sobre o que é ser uma mulher nos dias de hoje.
A jornada do site tem sido estimulante e o feedback das mulheres não poderia ser melhor. Construímos um grupo de discussão, o Talk Olga, que hoje conta com mais de 1200 participantes, além de recebermos mensagens muita gente que se identifica com nossas publicações e que compartilham suas histórias conosco.
Esse é o grande lance da internet, que tem sido uma plataforma incrível para o Think Olga. Ela permite um relacionamento muito próximo com essa comunidade de pessoas que de identificam com as ideias do site, que precisa muito delas para evoluir e continuar relevante.
FF: Por último, o que é a feminilidade para a Olga?
LB: É tudo o que parte das mulheres, incluindo o que não costuma ser considerado feminino. A feminilidade normalmente é associada à delicadeza, à cor-de-rosa, à saltos altos e mãos macias, e muitas mulheres se identificam com esses elementos, o que não é problema, mas simplesmente não torna aquelas que são diferentes disso menos capazes de exercer a sua feminilidade.
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Sensacional e muito esclarecedor. Adorei!!!
Adorei!
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