Flavia Fascendini: Fazendo uma revisão dos acordos da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI) e pós-CMSI em torno do financiamento para acesso universal em países em desenvolvimento: você acha que isto tem conseguido algum impacto no campo das mulheres e das tecnologias de informação e comunicação (TIC)?


Magaly Pazello: Para responder a essa pergunta, a gente vai ter que voltar lá no passado e bater na tecla, daquilo que foi um dos grandes entraves nas negociações dos documentos da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação: a linguagem empregada para gênero, a sensação que a gente tinha era como se todas as discussões sobre igualdade de gênero, eqüidade, direitos das mulheres, etc, que ocorreram nas conferências anteriores não houvessem existido. Nós estávamos diante de uma espécie de ruptura da linguagem e um retorno ao passado, anterior mesmo a Conferência dos Direitos Humanos, de População e Desenvolvimento e a Conferência das Mulheres. E isso é muito ruim. Por um lado, era algo esperado porque refletiu o estado do mundo em 2003, a gente estava muito próximo de 2001, havia acabado de ter a invasão do Afeganistão, depois toda a historia do Iraque, Bush fazendo aquelas coisas horrorosas, trilhando seu caminho para a reeleição, enfim, era um momento muito ruim. Vivemos um momento em que as questões de privacidade, direitos humanos e segurança se cruzaram perigosamente a ponto que passou a ser “aceitável” a violação dos direitos e liberdades civis em troca de uma suposta sensação de segurança e tal. Um bom exemplo disso é o Patriot Act [1]. Então, linguagem, num ambiente de negociação de textos, num ambiente diplomático é crucial, porque os textos negociados e acordados supostamente vão se tornar ações, vão virar políticas públicas. A princípio é isso, cada palavra, cada ponto e cada virgula tem um peso, tem uma história, tem uma razão de ser, tem uma negociação política, tem acordos entre países. Então, essa ruptura e essa volta ao passado foi determinante para debilitar o que havia sido discutido e conseguido antes. A gente não pode esquecer que antes da CMSI houve o processo da conferência da Organização das Nações Unidas sobre financiamento do desenvolvimento (FFD na sigla em inglês), em 2001, cujo processo foi atravessado pelos acontecimentos de 11 de setembro e acabou se desenvolvendo em meio a um clima de guerra fria. Então, esse era o cenário: debilitação muito grande dos direitos, das linguagens legitimadas. Voltando a CMSI, nós enfrentamos assim o quão frágil e vulnerável é esse tipo de conquista, ou seja, o quanto a gente tem que ficar trabalhando vigilante para que a conquista de uma conferência reflita em acordos e que ela passe a ser parte da prática. O impacto deste cenário no nível regional, digo na América Latina, foi que a linguagem sobre gênero e os direitos das mulheres se resumiu a uma linguagem muito assistencialista: as mulheres não eram nunca mencionadas nos contextos em que se negociavam os papéis dos atores nas instâncias de decisão e no desenho das políticas de TIC. Em lugar disso, os textos propostos eram direcionados a, por exemplo, alfabetização digital das meninas e mulheres. Esse é um problema sério porque as pessoas ficam trabalhando a questão do financiamento da sociedade da informação com perspectiva de gênero como se gênero fosse sinônimo da palavra mulheres e como se nós fossemos meras receptoras. Os mecanismos são de outra natureza, não devem ser nem de natureza assistencialista, nem devem empregar a palavra gênero desta maneira equivocada. Paralelo a isso, ocorria algo muito curioso. Havia oferta de recursos para financiamento de projetos e ações durante o processo da CMSI. E havia uma enorme preocupação de que estes recursos se extinguissem imediatamente concluído o processo da CMSI, em Túnis. Você pode questionar se esses fundos representavam muito ou pouco, se o dinheiro era mal usado ou se todo mundo teria acesso. Essa preocupação com a escassez de recursos financeiros era visível tanto que fazia parte dos debates na América Latina, por exemplo, em reuniões multisetoriais organizadas pela divisão da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), que acompanha a sociedade da informação, isso era verbalizado a ponto de influir nas decisões sobre as metas do eLAC2007. Então isso é muito curioso, porque se você tem de um lado uma estratégia que é a de reter essa oferta de recursos e, por outro, tem esse cenário de debilitação em que a linguagem empregada não reflete as conquistas de processos anteriores, não há como conectar perspectiva de gênero com financiamento de uma maneira satisfatória. Ou seja o que viu foram compromissos muito fracos com relação a gênero e empoderamento das mulheres. A promoção de ações e programas fica a dever enquanto as reais necessidades.


Flavia Fascendini: Há uma defasagem...


Magaly Pazello: Exatamente. Esse é o problema e é um problema sério. Agora, na reunião do eLAC 2010, a República Dominicana ficou responsável pelo grupo de trabalho (GT) em gênero. Finalmente vamos ter um GT de Gênero. Algo que não foi possível de ser acordado em 2005 na Conferência Regional Ministerial porque os governos afirmavam não ter como dar conta dessa agenda e que não havia capacidade instalada nos países para lidar com essa questão. Além do mais afirmavam que a agenda para 2007 já era muito extensa. Entanto, por conta de Beijing (a Quarta Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher realizada em Beijing em 1995), todos os governos na América Latina, salvo alguma exceção, têm as suas secretarias ou ministérios para a promoção de políticas para as mulheres. Então, como é que eles não têm capacidade instalada nos governos? A má vontade ali era clara. Os governos disseram isso porque essas secretarias e esses ministérios não estiveram envolvidos no processo, e não estiveram envolvidos no processo porque essa não é ainda uma agenda prioritária para as mulheres. Falta um debate amplo sobre o que o campo da sociedade da informação abarca e como as diferentes arenas deste novo campo estão discutindo temas importantes para todas as pessoas em todos os setores da vida humana. Então, se a sua pergunta é sobre o que impacta, bom, de certa forma não impacta. Porque tem alguns recursos, mais não tem a claridade de uso desses recursos desde uma perspectiva de gênero. A gente ainda tem que construir a ponte e tem que ser uma ponte forte! Na verdade, a tua pergunta é o desafio que a gente tem que enfrentar.


Flavia Fascendini: E o que você opina da recente inclusão de um artigo que fala tacitamente sobre gênero no documento chamado Compromisso de San Salvador resultante do processo do eLAC 2010?


Magaly Pazello: No eLAC 2007 não tinha grupo de trabalho para gênero porque como dito antes era aquela historia de que os governos não tinham capacidade instalada nem interna para trabalhar com tantas frentes, como se gênero fosse uma frente em si em lugar de um tema transversal para implementação de ações e desenho de políticas. O GT de Gênero é resultado dos esforços das mulheres no diálogo com governos no que Argentina e República Dominicana responderam positivamente, favorecendo a elaboração de propostas destinadas a desenvolver iniciativas de TIC com enfoque de gênero nos níveis nacional e regional. Então isso é interessante porque é o que tinha que estar lá em 2005 e não esteve. Avançou-se um pouco mas falta ancorar isso num plano de ação de verdade. Falta estabelecer as parcerias, o plano de trabalho, a alocação de recursos.


Flavia Fascendini: Falando das políticas dos agentes de financiamento ou doadores na área: quais você pensa que são as tendências atuais de desembolso de fundos dirigidos a organizações de mulheres na área das TIC?


Magaly Pazello: Eu não sou uma especialista no assunto e não lido com esse tema no cotidiano das instituições, ou seja, além de participar do processo da CMSI eu acompanho este tema através dos debates promovidos pela AWID (Associação para os Direitos da Mulher e o Desenvolvimento). Mas sem dúvida o financiamento, em geral, tem que ver com conjunturas geopolíticas. Há fluxos. O que se viu, em termos de tendências ultimamente foi a alocação de linhas de financiamento em diferentes áreas destinadas a África. Claro que há uma grande dívida para com a África, é fundamental que recursos, e não apenas financeiros, sejam destinados a esta parte do planeta. Mas como eu disse eu não sou uma pessoa que trabalha com esse tema. O que eu vejo em termos do fluxo para a América Latina é que este tem diminuído e sofreu mudanças de estratégia e de critérios adotados pelas agências, ou pelo menos de algumas agências. Então, para financiamento de projetos sociais, pesquisas etc, uma coisa que eu acho que se pode pensar como alternativa é buscar novos atores/parceiros financeiros além das agências de cooperação internacional e de cooperação local, ou seja ser inovador também nesta área e diversificar a ajuda. Eu acho que já existe uma renovação desses atores. Enfim, é como uma grande panela que tem vários componentes que devem ser analisados por partes. Os projetos e as organizações precisam realmente lidar com estratégias pensando na sua capacidade de planejamento futuro, na criação de projetos inovadores e estabelecimento de parcerias novas. Existem muitos elementos ali que devem ser examinados em sua particularidade. Por exemplo, em 2002, o Fundo Angela Borba não tinha linha de financiamento específica para a área de TIC e advocacy, mas apostou num pequeno projeto para uma reunião sobre a nascente sociedade da informação como campo político para a ação feminista. E foi esse pequeno financiamento que nos permitiu estar presentes num momento-chave do começo das negociações da CMSI que era uma grande novidade na época. O Fundo Angela Borba fez esse movimento inicial. Infelizmente, não houve pernas por parte das envolvidas naquele momento em fazer com que essa agenda ganhasse mais visibilidade no movimento. Havia outros temas em curso que igualmente requeriam atenção, de modo que continuamos dando passos de formiguinhas para fazer com que essa agenda seja incorporada pelo movimento como uma agenda política.


Flavia Fascendini: De quem provêm tais tendências de financiamento?


Magaly Pazello: As agências constroem suas próprias políticas e estratégias, eu mencionei antes a questão da conjuntura geopolítica. As agências lidam com dinheiro que também está no mercado financeiro, tem fundos que precisam ser recompostos todo o tempo, precisam captar dinheiro. Alguns doadores exigem que o dinheiro seja para uma determinada ação, outros não. Eu penso que as políticas das agências são decididas com uma série de questões sobre a mesa.


Flavia Fascendini: Sobre os governos e seus orçamentos de gênero: até onde você acha que o acesso das mulheres na sociedade da informação é de fato um assunto importante no marco dos Estados e seu compromisso com a igualdade?


Magaly Pazello: Falando apenas em termos de Brasil, eu acho que não tem linhas para isso, as linhas são em geral sem nenhuma especificidade. Na pesquisa que eu fiz em 2004 havia uma grande confusão entre o que é ter uma política destinada à igualdade de gênero e as necessidades especiais das mulheres e fazer telecentros só para mulheres. Você vai a qualquer reunião importante no Brasil sobre TIC e a mesa é composta só por homens. Apesar disto, o tema das TIC foi incluído nos documentos finais das duas Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, assim como o tema de ciência e tecnologia. E é de se notar os esforços da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, na gestão de Nilcea Freire, em realizar reuniões com grupos de pesquisas de todo o país e organizações não governamentais sobre o tema da desigualdade de gênero e as estratégias de incremento da presença das mulheres em ciência e tecnologia. Lástima que essas ações não estão em coordenação com as políticas de inclusão digital tocadas pelo Ministério da Cultura.


Flavia Fascendini: Quais você acha que poderiam ser mencionados como mecanismos de financiamento eficazes para atingir progressos nas políticas eqüitativas de gênero na sociedade da informação?


Magaly Pazello: Boa pergunta. Sem dúvida alguma, a gente tem que fomentar entornos favoráveis para quebrar a discriminação de gênero. Devem ser feitas mais pesquisas sobre o tema, deve-se aprimorar as parcerias com a academia, as ações locais e independentes e com todo o campo mais amplo da ciência e a tecnologia. Também coisas muito simples como portais para prover informação sobre este tema assim como para incentivar a presença das mulheres nesse campo são boas iniciativas. Outra coisa seria aumentar o grau de transparência e participação cidadã na área de governo eletrônico. Algumas coisas podem se fazer no campo do e-gov e cidadania digital, outras no campo de geração de renda, outras na promoção e aperfeiçoamento em educação e pesquisa. Também a questão da violência simbólica no ambiente virtual, que é muito forte. Há muito que se fazer nesse sentido, por exemplo, pesquisa e promoção de jogos que fomentem a convivência mútua entre gêneros. Deveria ter um fundo para isso mas primeiro deve se quebrar essa idéia boba de que jogo digital não é uma coisa boa para o crescimento das crianças. No Brasil, o Ministério da Cultura fez isso, só que não fez considerando a perspectiva de gênero. Há muitos jogos que montam suas histórias sobre inúmeras violações dos direitos humanos, estimulam a resolução de conflitos pela violência desmesurada e sobre tudo premiam jogadores que matam, estupram e torturam. Esse tipo de produto deve ser alvo de análise mais atenta. No entanto, não se trata de condenar o jogo pelo jogo. Há muitas vozes prontas para se oporem ao todo sem na verdade discutir os princípios que alicerçam este tipo de mentalidade. Não que a violência (jogos de guerra, ação etc) não devam existir, não se trata de proibir isso, se trata de interrogar o que está acontecendo.


Flavia Fascendini: Acha que os grupos e organizações de mulheres que têm interesse em trabalhar no campo das TIC e precisam de financiamento possuem as ferramentas suficientes para saber como apelar a esses fundos?


Magaly Pazello: Um ponto é que esse é um tema muito novo e a maior parte das organizações não conhece ou reconhece o campo das tecnologias de informação e comunicação como instrumento e como uma arena política. Há muito que fazer em termos de como as pautas tradicionais do movimento de mulheres se conectam com as novas pautas. O problema já não é ter ferramentas ou não. O problema é a criação de um novo campo político. É muito difícil encontrar pessoas que compreendam toda a extensão desse campo porque tem todo um conhecimento novo que ainda não chegou. A gente está num momento de construção de um campo político e ele está apenas começando. Muito chão ainda temos pela frente.


[1] Patriotic Act significa literalmente “lei patriótica”, mas é também a abreviação de “Provide Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism” (prover ferramentas necessárias para interceptar e obstruir atos de terrorismo). O Patriotic Act foi promulgado pelo presidente George W. Bush no dia 26 de outubro de 2001. Seu objetivo foi restringir uma serie de direitos constitucionais, para ampliar o poder repressivo do Estado sem a intervenção do poder judicial, com o intuito de garantir a segurança nacional e combater o terrorismo. A mesma tem sido severamente criticada por organismos de direitos humanos devido a restrição das liberdades e garantias constitucionais e tem sido considerada inconstitucional por vários tribunais. Mais informação disponível em http://es.wikipedia.org/wiki/Acta_Patri%C3%B3tica

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