Graciela Selaimen – Em sua experiência como consultora, quais têm sido os maiores desafios para a adoção de uma perspectiva de gênero na formulação e implementação de políticas de TIC?


Sonia Jorge - Antes de falar sobre os desafios, acho importante fazer a distinção entre formulação de políticas e sua implementação. Isso é muito importante em uma perspectiva de gênero, porque em alguns casos onde a questão de gênero foi considerada em documentos de políticas (seja através de referências ou endereçadas específicamente), o processo de implementação fracassou na adoção da perspectiva de gênero em todos os níveis. Por exemplo, em Moçambique, onde a política de TIC considerou a questão de gênero em muitos aspectos, nenhum dos projetos e programas resultantes desta política incorporou temas de gênero.


Esta é uma área que necessita atenção por parte das/dos ativistas na área de gênero. O desafio é assegurar que os esforços destas/es ativistas não fiquem plasmados apenas nas páginas dos documentos políticos, mas sim que resultem em soluções práticas que incorporem a iguladade de gênero no campo das tecnologias de informação e comunicação para o desenvolvimento.


Sendo assim, os desafios são muitos, mas eu diria que os principais ainda são:

1) falta de capacidade por parte de formuladores/as de políticas e agências implementadoras em adotar considerações de gênero e conduzir análises de gênero;

2) a maioria das instituições falha em integrar especialistas de gênero em suas equipes de políticas e regulação (mesmo quando a necessidade de cosiderar e dar importância à área de gênero é aceita de maneira geral). E eu quero enfatizar que contar com profissionais mulheres na área de TICs é importante, mas não é uma condição suficiente para assegurar que a análise de gênero será conduzida. É necessário que haja um sério comprometimento com a questão de gênero no trabalho na área de TICs e todos os programas de capacitação devem refletir isso.


Graciela Selaimen - De maneira geral, os governos se mostram abertos à adoção da perspectiva de gênero nas políticas de TIC?


Sonia Jorge – Em geral, quando há atoras/es informadas/os ou especialistas em gênero envolvidas/os nos processos que tragam o tema para o debate, os governos tendem a ser abertos e reconhecer o tema de gênero como transversal – e até mesmo incluí-lo em determinados contextos (tais como programas de universalização do acesso). Entretanto, os governos geralmente não são capazes de fazer a ponte entre simplesmente incluir a questão de gênero e a necessidade de uma análise aprofundada com perspectiva de gênero em muitos outros aspectos das políticas de TIC, incluindo questões como definição de preços e acessibilidade econômica, desenvolvimento de redes, critérios para seleção no caso de fundos para universalização de serviços, licenciamento, etc. E, mais uma vez, mesmo nos casos em que o tema de gênero chegou às discussões sobre políticas, nós ainda precisamos assegurar que a implementação destas políticas refletirá uma perspectiva de gênero e trabalhará em direção aos objetivos de eqüidade de gênero.


Graciela Selaimen – Como você avalia a participação dos movimentos de mulheres e feminista nas atividades de advocacy no campo das TICs? Este é um tema incorporado por estes movimentos e organizações?


Sonia Jorge- Eu acho que a Karen Banks nos provê com uma boa análise do trabalho conduzido por ativistas de gênero no campo das TICs, especialmente no contexto da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (o paper de Karen sobre o processo da CMSI está publicado no GenderIT em inglês – ver link relacionado). De maneira geral, eu acredito que a maior parte do trabalho de advocacy foi feito por ativistas de gênero que já trabalhavam no campo das TICs e tinham mais conhecimento básico do ordenamento dos temas e do processo, que podem parecer bastante complexos, de início. Mesmo estas ativistas passaram por um longo processo de aprendizagem e seu trabalho de advocacy reflete melhoras significativas.


Com poucas exceções, eu realmente não acho que o movimento de mulheres tenha tomado as TICs e as políticas de TIC como um campo de intervenção. Porém, o uso das TICs para perpetuar e facilitar a violência contra mulheres e meninas e o tráfico de mulheres fez crescer a consciência por parte do movimento de mulheres sobre a importância das políticas de TIC e as questões regulatórias. Mais trabalhos têm sido feitos nessa área hoje em dia, e esperamos que isso crie colaborações mais intensas entre ativistas de gênero e TICs e ativistas de gênero em geral.


Graciela Selaimen - Na sua opinião, quais deveriam ser as principais estratégias para que mais ativistas de gênero percebam as TICs como um campo de luta política, mais do que como simples ferramentas?


Sonia Jorge - Eu acho que o que está acontecendo em termos de TICs e violência contra as mulheres, pornografia infantil e tráfico de pessoas levará a um aumento do interesse nas políticas de TIC como um campo de luta. E isso vai jogar luz sobre nossa realidade atual, para o fato que nós ainda precisamos incoporar as questões de gênero em todo o nosso trabalho na área de TICs para o desenvolvimento (e aí nós podemos aprender bastante de outros campos de trabalho para o desenvolvimento).


Em termos de estratégias específicas, eu escrevi recentemente um capítulo para um livro [1] sendo editado por Nancy Hafkin e Sophia Huyer, onde eu argumento que em curto prazo, ativistas de gênero precisam desenvolver um plano para focar e influenciar políticas de acesso universal (inclusive fundos para acesso/serviço universal), uma vez que esta é a área que tem mais impacto imediato sobre a maioria das mulheres nos países em desenvolvimento (acesso e uso das TICs). Tal estratégia deveria ser focada nas políticas de precificação, desenvolvimento de redes, pontos de acesso comunitário, critérios para seleção e projetos, desenvolvimento de conteúdo e capacitação. Isso não quer dizer que outras áreas não sejam importantes, mas se as/os ativistas de gênero querem que seu trabalho tenha impacto, então elas/eles precisam estabelecer prioridades e equipar-se para trabalhar efetivamente em uma ou em poucas áreas críticas (pelo menos no curto prazo).


Graciela Selaimen - É comum vermos uma abordagem por parte de governos e até mesmo de organismos internacionais que financiam projetos de TIC que inclui um componente de gênero quando se trata de atividades relacionadas a conteúdo e treinamento. Como incluir a perspectiva de gênero em políticas e projetos em todos os níveis, começando pelas discussões sobre infra-estrutura e marcos regulatórios? Qual seria o impacto desta abordagem para as mulheres?


Sonia Jorge - Sua afirmação pode ser verdadeira, mas minha experiência é que há de fato muito pouco desenvolvimento de treinamento e conteúdos em projetos de TICs, e infelizmente ainda são muito menos focados no treinamento de atoras/es na área de políticas e regulação, atoras/es que tomariam decisões sobre o desenvolvimento de infra-estrutura, marcos regulatórios, etc. E quando eu falo de treinamento e desenvolvimento de capacidades, estou me referindo a programas desenvolvidos para atender às necessidades de públicos específicos, inclusive com atividades práticas para ajudá-los/as a lidar com as complexidades das políticas e regulações de TIC na prática diária (algo que é facilmente esquecido).


Eu sugeriria que programas de capacitação para formuladoras/es de políticas e reguladoras/es integrem uma perspectiva de gênero, provejam sensibilização sobre a questão de gênero e deixem clara a necessidade de que especialistas em gênero integrem equipes de formulação de políticas e regulação (inclusive trazendo experts em gênero e TICs que possam claramente estabelecer os vínculos entre estes temas e oferecer as provas de como a análise de gênero pode trazer impacto). Se especialistas em gênero fizerem parte das equipes, elas/eles podem contribuir para a discussão e processo decisório em relação a vários temas de TICs , tanto de uma perspectiva de formulação quanto de implementação de políticas.


Uma vez que o tema de gênero seja finalmente incorporado, o impacto será enorme. E esta é uma área onde os governos poderiam aprender enormemente das organizações da sociedade civil, organizações de mulheres, que são as únicas que estão alcançando um impacto considerável nesta área. O grande número de projetos de TICs focados em gênero reflete o trabalho inovador e dinâmico feito por estas organizações. Os diversos prêmios para trabalhos na área de gênero e TICs mostram exatamente isso, e os governos podem aprender destas experiências, tanto para desenvolver seus próprios programas quanto para apoiar programas já existentes implementados por organizações da sociedade civil.


Graciela Selaimen – Você tem trabalhado como consultora em diferentes países, em nível global. Há diferenças entre as regiões, em relação à perspectiva de gênero em políticas de TIC? Como você vê a situação na América Latina quanto a este tema?


Sonia Jorge – Sim, há diferenças claras. Por exemplo, na África, onde a UN-ECA teve um papel fundamental ao apoiar países no desenvolvimento de estratégias nacionais de TIC (como parte do seu processo NICI - National Information and Communications Infrastructure), a maioria dos processos nacionais desenvolvidos com o apoio da ECA reflete algumas considerações de gênero. Na Ásia, um número de países começou a tratar do tema de gênero e TICs, tanto de uma perpsectiva de formulação de políticas, quanto de implementação.


Com exceção da República Dominicana, onde a política de TIC (E-Dominicana, setembro de 2005) estabelece objetivos claros em direção à igualdade de gênero no campo das TICs para o desenvolvimento bem como projetos e programas específicos de gênero, esta questão não é abordada em nenhum dos outros documentos de políticas de TIC na América Latina (a não ser que algo novo tenha acontecido recentemente; e eu analisei as políticas da Colômbia, do Equador, da Bolivia, do Brasil, e o Plano de Ação de Quito, que oferece as diretrizes das políticas regionais para as Agendas de Conectividade [CITEL]). Alguns desses documentos abordam a redução da pobreza e as necessidades das populações rurais, mas nunca se referem a gênero como um tema a ser considerado.


Graciela Selaimen – Que recomendações você faria às mulheres que trabalham pela equidade de gênero no campo das TICs para que alcancem uma melhor intervenção nos processos nacionais e em suas relações com os governos?


Sonia Jorge - O trabalhode advocacy é importante e as ativistas na área de gênero e TICs precisam continuar envolvidas e ser inovadoras em seu trabalho. Como eu disse antes, elas também precisam priorizar e focar seus esforços onde podem conseguir mais impacto. Entretanto, para assegurar que as considerações de gênero sejam realmente incluídas em políticas nacionais de TIC, tanto no seu desenvolvimento quanto na sua implementação, é necessário mais do que o trabalho de advocacy. Nós precisamos assegurar que mais profissionais especialistas em gênero e TICs estejam envolvidas em todos os aspectos do desenvolvimento das TICs. Mesmo contando-se com mais políticas com perspectiva de gênero, como em Moçambique, na República Dominicana ou na África do Sul, a participação ocasional de experts em gênero e TICs não vai garantir a ótica de gênero na implementação de políticas em todos os níveis, mas vai atingir apenas aqueles/as especialistas que estiveram envolvidos/as nestas implementações. Agências regulatórias e formuladoras de políticas precisam trabalhar com especialistas de gênero ou contratar estas especialistas. A experiência na Coréia, onde a equidade de gênero foi tomada em conta em todos os níveis do desenvolvimento de TICs e onde o Ministério da Equidade de Gênero desempenhou um papel fundamental mostra como a colaboração entre especialistas de diferentes ministérios e as organizações de mulheres coreanas resultou em ganhos positivos em direção à equidade de gênero no campo das TICs.


[1] Nancy Hafkin and Sophia Huyer, editors. Cinderella or Cyberella? Empowering Women in the Knowledge
Society. Kumarian Press, 2006. Chapter 3 (Sonia Jorge): Engendering ICT Policy and Regulation: Prioritizing Universal Access for Women's Empowerment.

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